O dia começou com um estalido. Era o som do caixão de madeira barata se abrindo, enquanto as filhas em volta esperavam para ver a silhueta da mãe.
Marta, chorando, segurava seu livro santo, e o apertava contra o peito. Sílvia sentia ternura pela irmã, cujo único mal era acreditar demais. Não sem uma certa arrogância, a achava pequena. Mas boa.
Paula estava ereta e sua expressão era de força, quase indiferença. Mas Sílvia notava suas mãos nervosas, inquietas, trêmulas. Era filha, antes de tudo.
E Sílvia não sabia o que esperar. Até aquele momento, tinha ido velar uma idéia, um conceito de ser humano que há alguns anos não via. D. Lourdes era um conceito, nada mais.
Até escutar o estalido, e mudar sua atenção das irmãs para dentro da caixa. Sentiu frio. Frio interior, daqueles que murcham o estômago e tiram a força das pernas. Perdeu o ar para a garganta fechada.
Foi a primeira a se aproximar do corpo, e tocar-lhe a face. O calor do abraço não estava mais ali. Sua mãe não estava mais ali. O que via era uma senhora enrugada e com semblante triste, que a maquiadora da funerária tentou rejuvenecer.
-Mamãe parece uma puta, quem é a maquiadora?
-Paula, por favor, calma... Isso lá é jeito de falar!
Sílva caminhou em silêncio até a bolsa e pegou um creme. Enquanto Paula esbravejava e Marta chorava começou a limpar o rosto da mãe.
-Desculpa, mãe, desculpa, tá? Sei que não fui a melhor das filhas, mas sempre te amei... Desculpa, mãe, desculpa...
Enquanto falava com a mãe, não reparou que começou a chorar. Também não se deu conta de que suas irmãs haviam parado de discutir e a escutavam. Só voltou a si quando Paula falou:
-Ah, agora adianta, né, Sílvia, agora que ela não te escuta mais. Fácil pedir desculpas pra morto, né?
Em uma fração de segundo Sílvia se esqueceu de onde estava. Esqueceu-se de que aquela pessoa era sua irmã e que seu ataque era na verdade parte de uma amargura sem fim. Esqueceu-se de tudo, e agarrou-a pelo pescoço, empurrando-a contra a parede, raivosa, febril.
-Escuta aqui, sua mal amada, não vou mais admitir que você me trate assim. Chega, se a sua vida é uma merda e a minha não, não é problema meu! É problema SEU! SEU!! Ninguém mandou você ficar nessa cidade, ninguém mandou você se casar com o primeiro trouxa que apareceu só por que ele não sabia a vadia que você era, ninguém mandou você se encher de filhos e desistir da sua vida! NINGUÉM!!!
Paula ficou grudada na parede, atordoada com uma represália que ninguém ousava contra ela.
As pessoas começaram a chegar e a briga ficou para depois.
Tudo era estranho para Sílvia. As pessoas que um dia a conheceram a abraçavam como velhos amigos, e ela não agüentava tanta pele. Tanto beijo e tanto aperto. Por que toda esta intimidade agora? Não queria nada disso, queria apenas rever a mãe, mesmo que fria e deitada. Encostou-se no caixão e ali ficou, horas a fio, até ser acordada pelo cunhado.
-Estou indo buscar comida pra Paula, você quer alguma coisa? Sabia que já tem Mc´Donalds na cidade?
Sílvia sorriu, feliz com a tentativa de Nelson de alegrá-la um pouco. Era a única pessoa que era doce com ela.
-Obrigada, estou bem.
-Você vai embora quando? perguntou ele, enquanto passava os dedos na borda do caixão, e olhava para a sogra.
-Não sei, acho que hoje mesmo. Nem sei por que vim.
-Hoje? Imagine, não vou deixar você pegar estrada à noite.
-Não agüento mais, queria ficar uma semana, mas não tem clima. Não imaginei que as feridas fossem tão grandes.
-Não deixo, é final. Pelo menos dorme e vai amanhã cedo.
Sílvia olhou com carinho para Nelson, e agradeceu-lhe a atenção com um afago no braço. Era bom tê-lo ali, pelo menos um dia fora seu amigo...
Nelson saiu e Sílvia viu que Paula os observava. Desviou o olhar, suspirando.
Sentiu a irmã se aproximar, e tomar ao seu lado o lugar em que antes estivera Nelson. Com o mesmo movimento de acariciar a borda de madeira, Paula perguntou, em voz baixa, quase amável:
-Você e ele já se conheciam, né?
Sílvia não respondeu, só a olhou.
Paula levantou os olhos, e pela primeira vez Sílvia a viu frágil, chorando e suplicante.
-Já... Há muitos anos. Ele fez faculdade comigo. Só acho que este não é o momento de...
-Sim, eu sei. Não é o momento. Podemos conversar à noite?
-Eu ia embora, Paula. Ia depois do enterro.
-Vai amanhã. Conversamos à noite.
Paula se afastou e Sílvia olhou o relógio, acima do Cristo crucificado.
Já era quase hora do enterro.
O dia passara rápido, mas sabia que tinha uma longa noite pela frente....
Último capítulo, semana que vem... Inté!!
4 comentários:
Chega semana que vem... Chega...
Beijos minha querida!!!
Está quase a atingir o clímax! :)
Falar em Macdonalds ao pe de um morto...lol...que horror...lol...
Rubina, aqui no Brasil, especialmente no interior, quando dizemos que "até Mc´Donalds a cidade já tem", é uma ironia para dizer que ela nem é tão pequena assim... Como se a lanchonete fosse um símbolo de desenvolvimento, rsrsrs....
beijo!!!
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