Enjoy the ride.
Foto: Olhares.com
Ainda era muito cedo, e ela não tinha pregado os olhos. O telefonema da noite anterior chacoalhara fantasmas que estavam tão bem ali, adormecidos, praticamente esquecidos.
-Mamãe se foi. Você vem?
Não ouvia a voz de Marta há cinco anos, e subitamente ela ressurgia, cheia de lodo, como se viesse do fundo de um túmulo lembrá-la de que não era sozinha no mundo.
Preferia assim, sozinha, independente...
Marta nunca fora companhia. Nem ela nem Paula. Cresceram ouvindo D. Lourdes berrar que tinham que ser amigas, pois eram irmãs. Deus as botara naquele mundo quente para serem amigas.
Sílvia imaginava esse tal Deus como uma imensa galinha, "botando" ela e suas irmãs no meio daquela cidade, em frente à Igreja Matriz.
-Não repita isso, menina, é pecado! Ele castiga!
-Castiga como? Bica?
D. Lourdes saía secando as mãos no avental, resmungando, desolada:
-De onde veio essa? Tão diferente de nós...
Sílvia nada mais fez que dar razão à sua mãe. Sabia que era diferente, e guardava certo orgullho disso. Quando rasgou seu uniforme de coroinha, costurado com tanto sacrifício pela tia Berta, causou algo próximo ao Apocalipse na cidade. A mãe desmaiou, Paula ria no canto e a caçula Marta rezava ajoelhada em seu altar de plástico. A recordação mais marcante que Sílvia tinha era do som que o cinto de seu pai emitiu, ao ser arrancado da calça.
Sangrou, sangrou por horas, sem permitir uma lágrima exposta.
Naquele dia soube que iria embora, para nunca mais.
Foi apenas uma questão de tempo. Flutuou entre aquelas pessoas por mais 10 anos, alheia a quase tudo que ali acontecia.
Sentia um carinho triste e fosco pela mãe, em cujos olhos percebia a frustração pela filha doente que tinha. Não podia ser normal, a pobre Sílvia. Só podia ser doente. É. Doente.
Acabou a escola aos 17 anos, e em um sábado pela manhã, desceu com sua única mala para a cozinha, onde aquele grupo de familiares devorava o café da manhã de sempre. Sílvia olhou a mesa, prometeu-se jamais, em sua vida, comer bolo de fubá e biscoito de nata novamente e comunicou:
-Já vou.
Não viu resistência. Paula se arrumava para a missa, maquiada, penteada, pronta para encontrar o filho do dono do Correio da cidade, com quem dizia que se casaria. O pai encheu a boca de bolo e resmungou algo que nunca soube.
Marta levantou os olhos e docemente disse à irmã que rezaria por sua alma, tão perdida e confusa.
-Perdida posso estar, sim. Mas confusa nunca estive.
D. Lourdes levantou-se, única preocupada com a filha e perguntou para onde ia. Precisava de algum trocado para ônibus? Podia sair assim, sem ter 18 anos? Não iria para casa de tolerância, não, não é? O que pensariam da família? Não, para casa de tolerância ela não podia ir.
-Calma, mãe, vou para São Paulo. A Regina foi morar com a tia, e tem um lugar para mim lá. Não se preocupe.
Andou sozinha até a rodoviária, entrou no ônibus e, pela primeira vez em 17 anos sentiu-se verdadeira.
Apavorada, mas verdadeira.
Continua semana que vem. Quinta feira?
Inté!!
7 comentários:
Uhuuuuu!!!! Adoooooro blogsérie!!!
Já estou adorando... louca para ler o próximo "capítulo"!!!
Beijinho Tati!
Já tinha saudades das blogséries :)
Fico à espera da continuação!
eba! vou acompanhar!
beijo
Right.
Taubrós!?
Excelente começo, tati, já atiçou a curiosidade!!!
beijo
Verdadeiramente delicioso como sempre! Daqui a uns tempos sou bem capaz de regressar às lides das blogséries...
E ficamos a aguardar. Beijinhos
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