quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Elas

Foto: 1000imagens



... e estava molhado. Levantaram-se então da grama, checando as possíveis manchas de terra na calça e continuaram caminhando juntas. Já era tarde, mas não queriam se separar, havia ainda tanto para contar.

Ana estivera em Paris, tinha ido aos cafés literários que tanto queria conhecer e um francês de olhos fundos tinha cruzado sua vida.

Tanto para contar...

René havia perdido Zezé, sua companheira há 12 anos. Seu arfar doente feneceu em seu colo, na mesa fria do veterinário. E estava lendo Cortázar, tanto para contar...

Decidiram então sentar e comer algo, mais uma desculpa para continuarmos conversando. René estava ainda triste, não queria deixá-la sem algumas risadas, e minhas histórias francesas certamente a animariam. Comecei a falar de Albert , que conheci no café Cluny. Só René entenderia minha dor, minhas dúvidas e saudades, e só ela teria o conselho de que precisava. Sentia-me segura a seu lado, conhecia seus olhares e podia garantir que Ana lia meus pensamentos. Contou-me do Cluny, de Albert e me fez rir.
Pedi um sanduíche, e Ana um prato de massa. Voltou de Paris com saudades de comida farta e de René...

Juntas passaram por tanto... Difícil aceitar que era noite e que teriam que se despedir. Aquela companhia fácil e conhecida as confortava e não havia distância que as desligasse. Um simples toque de telefone, uma mensagem, e tudo se conectava.

Ana saboreava seu prato como uma criança que se lambuza de sorvete. /Que saudades disso/, murmurei enquanto fechava os olhos para melhor sentir o molho em minha boca. René riu, e continuou falando do livro que estava em cima da mesa. “62 Modelo para armar”, ela continuava insistindo para que eu experimentasse Cortázar, /É como esse prato de massa que comes, há que se fechar os olhos para saboreá-lo/. Seu entusiasmo era quase pueril, falei que leria, mesmo sabendo que não o faria, pois Ana preferia o fantástico real, seu francês de olhos fundos e sua mala aberta ao pé da cama.

Noite adentro falaram, René chorou por Zezé, riu ao ouvir que Ana cochilou na final da Roland Garros, ambas se sentindo protegidas por aquele laço que tinham.
Em um certo momento, Ana suspirou e comunicou à amiga a decisão já tomada. Não queria falar disso, estavam ali tão isoladas em si, tão em nosso mundo, nossos códigos. Ali nada nos alcançava, podíamos tudo.

Mas era preciso dizer-lhe logo. / Os olhos fundos de Albert me mandam de volta a Paris/ Quanto tempo?/ Sem data/ Vais quando?/ Duas semanas/ ......./ ......./ Levas tudo?/ O que couber./ Lês o livro do Cortazar, se eu te der ?/ Claro!/ Promete!/ Prometo!/ Sem prometer e depois não ler. Promessa verdadeira, pactual!!!/ Leio, me cobras depois./ ......./ Vens me visitar?/ Em Paris? Achas que não... Te visito na Sibéria, se trocares o francês por um russo...
Riram... Russos não tinham os olhos fundos dos franceses...

Ficaram um pouco em silêncio, sorrindo, processando mais um pouco a dor da separação próxima. Levantaram-se e caminhamos juntas. Ofereci ajuda com as malas, Ana aceitou. Propus cinema, / Vamos à Mostra, René, Comme un Air passa amanhã/ Não, nada francês/ Boba/ Passa algum filme russo?...
Riram, engolidas pela noite e pela calçada reta.

Sabiam que tudo ficaria bem.

13 comentários:

Anônimo disse...

Por onde começar?
Pela identificação?
Rolland Garros?
Carla Bruni!
Lu

Anônimo disse...

Que tal começar pelo laço?
Pela amizade inigualável?
Pela tristeza da separação?
Ou melhor ainda,
Pela certeza de que tudo ficará bem...
Tati

Anônimo disse...

É, certas coisas só quem tem o dom da palavra pode expressar, como esse texto, Jeca.. a simlicidade de uma amizade verdadeira, o sentimento de proteção que nos dá qd temos isso com alguém, conhecer pelo olhar, pela banalidade da distância qd uma mensagem já acaba com ela.. lindo!
Caia

Roberta disse...

É trecho de algum livro?
Lembrei da minha mãe e da melhor amiga dela. Se conheceram aos 13 anos naquele colégio italiano rigoroso. Aos 20 e poucos a amiga casou-se com um diplomata e foi morar pelo mundo afora. Minha mãe a visitou até no Japão.Qd minha mãe casou foram perdendo contato. Atualmente ela já está de volta ao Brasil há alguns anos e é minha psicanalista!
Como fica subentendido no seu post, "tudo acaba bem quando tudo acaba bem". ;)

Roberta disse...

Ah! E eu chamo o filho dela de primo!!! rs
bjs

Anônimo disse...

Je suis desolée, mas peguei este post para mim!
Luli

Anônimo disse...

e eu dediquei esse post pra Aninha.. foi meu presente de aniversário..hehehe..
Caia

Tati disse...

Caia, que bom que você leu e lembrou da Aninha, sinal de que vive uma amizade linda e deve sim preservá-lsa, sempre!

GZ, não é trecho de livro, não, é resultado da cachola jeca mesmo....
Mostra pra sua mãe e pra amiga dela, pode ser que gostem...

Luli... É seu! não precisa nem comunicar.

Capitão-Mor disse...

Porque será que grande parte das brasileiras tem um fascínio tão grande por europeus!?

Tati disse...

eu especificamente não tenho, mas talvez seja uma busca por desconhecido... Cultura, mistério, sei lá...
Mas banco a advogada do diabo:
"Por que grande parte dos europeus tem fascínio tão grande por brasileiras???"

Anônimo disse...

esse texto tem cara de novo... deixou de lado aquele lado sombrio e triste dos antigos, parece mais jeca
!

Luciano Flores disse...

Jeca é???

Anônimo disse...

A gente sempre sabe quando as coisas vão dar certo ou não, né, Tati? Especialmente quando *a verdade* é compartilhada ;o)

beijos e boa semana

MM