Eram já dois copos de vinho quando ela viu a
foto. Uma varanda, cheia de verde, vasos e algumas flores rosas. As telhas
apareciam na moldura, um pouco torta pela falta de cuidado da fotógrafa, mas
ela ainda assim sentiu o cheiro. O cheiro da cerâmica quente e do café. Ela
logo viu a tia sentada numa mesa de madeira rústica, provavelmente vestida num
tecido simples de descanso, chapéu à mão, pronta pra uma caminhada. A elegância
do dia a dia ali se rende à simplicidade da fazenda. O cachecol que a protege
em Paris ali fica na gaveta, refém do sol escaldante do Mato Grosso do Sul. Da
foto, ela só sente o calor. Não o calor do sol, mas o calor da mesa de café da
manhã que ela viveu há tantos anos... Uns 20 anos, talvez? Mais. O calor do
carinho, da amizade, da Torta Olga. O calor da liberdade impensada que nem
imaginava que era tão livre. Tão cheia de vida.
Em dois dias serão 10 anos da morte do seu pai.
Ela trava o teclado. Não imaginou que a varanda da Tia Dirce ia levá-la à morte
de seu pai. Que a mesa de café da manhã daquele fim de semana ia tocar no
sentimento que os 10 anos sem ele traz. Nas novas perspectivas de uma relação
que ficou unilateral sem a presença de uma das partes. Acreditava que seria um
breve texto sobre saudades de uma época jovem, de amizades antigas, de pão de
queijo e bolo quente.
Ela pára o teclado. De novo. Dessa vez para
consolar a filha que entra aos prantos porque está assistindo a um filme em que
o cachorro morre. "Ser sensível é parte de quem você é, filha, chora. Não
perde isso, não. Mas corre pra ver o final porque no fim, nenhum filme é
totalmente triste. Confia em mim. Você vai sorrir. Mesmo que entre lágrimas."
10 anos. 20 e tantos, do fim de semana na
varanda da fazenda. Ela se olha no espelho e se pergunta quem é. Há tempos não
escreve. Não cria. Há tempos que se sente presa na rotina necessária da
maternidade num país em que não cresceu. Focada em ajudar os filhos a serem
quem são. Quem são... Irônico, não?
Toma mais um gole do Vinho Verde português.
Português como ele foi, como ele garantiu que ela também se tornasse. Ele se
foi antes de que ela pudesse agradecê-lo por isso, antes que ela pudesse
agradecê-lo por tanto mais. Ele não sabe o quanto ela, agora, se vê nele. O
quanto ela, hoje, sabe que é ele. Ele se foi sem ter ouvido "eu tenho a
sua empatia com os outros. Eu tenho sua alma cigana. Sabe o tal Sebastianismo
coletivo que você carregava? Pois bem, eu também carrego. Sabe quando você me
pedia pra escrever a sua biografia? Era o escritor em você, que eu também
tenho. Eu cresci achando que meu forte era ser dura e racional, mas encontrei
meu poder na sensibilidade que eu nem sabia que tinha. Sua. Sua
sensibilidade."
Tanto que lhe diria. E, no entanto, há 10 anos
que não o tem mais. Há 10 anos ela se
despediu dele ao som de Vivaldi, escolhido às pressas pra fugir do trânsito paulista
do fim da tarde. "As quatro estações". A última piada que ele pregou
nela. A música do comercial de sabonete que nada tem de fúnebre e a fez sorrir
quando acompanhou o caixão no crematório. 5 da tarde. O trânsito que eu vou
pegar. Em meio às lagrimas, ela sorriu, como sorri em todo filme que não acaba
triste, como sorri em toda história que acaba em ternura.
Troca Vivaldi pelo Fado. Chora. Os acordes do
Fado sempre a fazem cair no choro.
"Você nem imagina o quanto deixou de você
em mim. E eu te peço perdão por não ter te mostrado isso antes de ir embora. Perdão
por eu não ter te dito que o cheiro de vinho com salame e queijo me faz sorrir.
Perdão por não te agradecer as suas historias que eu não pude escrever porque
não sabia o valor que tinham. Perdão por não te mostrar o quanto somos
parecidos. Sim, eu e você, parecidos. Perdão por você não me ver chorar com
Fado e não saber que eu me vejo em você. Em seu coração grande e em sua paixão
pelo próximo. Me perdoa por nunca ter te dito o quanto eu ter admiro. Eu te admiro.
E muito."
Pra voltar pra varanda da fazenda ela troca o
Fado por Zé Ramalho, ritmo que a conecta, estranhamente, ao ponto de origem. Os
vasos da Tia Dirce. O pé de chão do forró em Itacaré. O céu estrelado em
Maceió. A paixão do Rio de Janeiro. As noites em São Paulo. Agora é ela que
está à mesa rústica, vestido branco e chapéu na mão, contemplando o verde, o rosa
e os vasos. O cheiro de café, de pão de queijo, de vinho, salame e queijo. De
cuca com nata e chimarrão. De lenha. De boteco e asfalto. De mar. De aeroporto.
Do cangote da irmã e do colo da mãe.
E desse cheiro todo, desse som (agora Marina
Lima no Itunes, e ela teme que Legião seja o próximo. Noite longa à frente...)
ela sente o abraço da sua História. Uma coleção de experiências, amores, areias
e sabores que caem em seu peito e mais ou menos formam quem ela acha que é. Ela
muda. Hoje é fado, amanhã rock and roll e em alguns segundos Cazuza.
"Aguava o bom do amor."
Ela pega o chapéu, toma mais um gole do café e
se levanta. Uma brisa quente balança o vestido branco e seus pés quase queimam
no piso ao sol. Ela caminha, toca as folhas verdes e as flores do caminho.
Caminha com a leveza de quem sabe que vai pisar nas pedras a talvez furar o
dedo nos espinhos, mas que a mesa atrás de si fica posta, cheia de bolos
quentes e cheiros frescos. Ao som dos passarinhos.
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