sexta-feira, abril 12, 2019

Fazenda São João

A Fazenda São João

Eram oito da manhã quando Anita ouviu o motor de caminhonete se aproximando do portão da fazenda. Olhou pela janela à frente da pia, secou as mãos no avental florido que Jorge lhe havia dado de Dia das Mães e respirou fundo. Tão cedo, ninguém entra pela estrada a essa hora com boas notícias. Fechou a torneira e se dirigiu à porta. Ombro encostado na beira, pé sem chinelo apoiado na perna ao lado. Braços cruzados. Cenho franzido. 

“Rubens”, gritou por cima do ombro sem olhar pra trás.
“Ruuuubens, tem uma caminhonete chegando.”

Rubens veio secando o rosto, olhou para Anita com olhos inchados de quem já não precisa acordar com os galos pra ir pra lavoura e já pode se dar ao luxo de dormir até sol alto. Enquanto caminhava até ela, se pegou pensando que mesmo depois de tantos anos (lá se vão quantos, 30? 35?) Anita ainda era bela como quando a viu pela primeira vez, descendo do lombo do cavalo de seu pai na frente da padaria da vila. Parou poucos metros atrás dela e viu que a cintura que carregou 3 filhos ainda fazia uma leve curva, e teve vontade de abraçá-la. Não o fez porque sentiu a tensão em seu corpo.

“Quem será?” Resignou-se a perguntar

“A essa hora? Levantando esse poeirão todo? Agouro, com certeza.”

Nos segundos que restavam para o veículo chegar, a cabeça maternal de Anita correu a todos os seus, como se checando que cada um dos pintinhos estão seguros em baixo de suas asas. Helena havia saído para trabalhar cedo, Mauro esteve na semana passada com os pais, parecia bem de saúde e deveria estar na cidade em aula nesse momento e Jorge… Seu coração apertou. Apenas Jorge, seu primogénito estava longe demais e dele não sabia a uns meses. Seria ele? De volta do campo de batalha? Por um breve sopro de tempo seu coração sentiu esperança e Anita se atreveu a olhar para Rubens e aceitar que sua mão a envolvesse pela cintura. Com um sorriso maroto se virou para o marido. 

“Será que ele voltou?”

Sentiu o calor fresco do rosto do marido ao seu lado. Reparou em suas rugas, na pele marcada de sol, de anos e anos de trabalho duro, tudo pra fazer dos filhos pessoas da cidade. A mão dele por cima do vestido e do avental florido ainda era calosa, dura, áspera, opostas ao seu coração mole de homem grande. 

Arrumou o cabelo e alisou o avental quando a caminhonete verde estacionou. 

Quem saiu não foi Jorge. Um senhor de uniforme do Exercito Brasileiro desceu com um envelope nas mãos, e ao ver o casal posto à porta, bateu continência. Ao se aproximar, depois dos bons dias e dos desculpem a hora, entregou à Anita o envelope. O soldado treinado não abaixou os olhos mas Anita reparou que o homem por baixo do uniforme tremia ao passar-lhe o papel. 

Por baixo do avental (Jorge lhe dera de Dia das Mães, comprei quando passamos por Maceió, mãe, cheio de flores pra senhora se alegrar) sentiu que o coração lhe batia como se fosse rasgar a pele. Passou o envelope para Rubens e sem precisar abrir para saber o que era, de olhos fixos no soldado filho de outra mãe, perguntou.

“Quando?”

“No dia 25 de Março, senhora.”

“Onde?”

“Em batalha.”

“Eu perguntei onde”

“Na fronteira com o nosso país vizinho, senhora.”

“Sofreu?”

“Nem viu. Sofremos nós, que ficamos. Senhora.”

“O senhor tem mãe, soldado?”

“Tenho sim senhora.”

Enquanto Rubens urrava de dor sentado à mesa da cozinha, Anita flutuou as mãos por trás da cintura fina (a cintura que se alargou tanto para trazer Jorge à vida), desamarrou o avental florido de Maceió (a senhora ia adorar a praia, mãe, um dia levo a senhora e o pai.) e o entregou ao soldado vivo filho da mãe, não dela, de outra mãe viva.

“Dê a ela de presente. Esse pedaço de pano bonito leva o amor de um filho. Não merece carregar a dor de uma mãe”

O homem por baixo do soldado engoliu em seco uma enxurrada presa na garganta, pegou o avental, abaixou a cabeça e voltou por onde veio.

Anita seguiu o poeirão do agouro pela janela, até que ele sumiu.

Por cima do vestido, no lugar do avental a dor que ela nunca mais despiria. 

Nenhum comentário: