domingo, setembro 22, 2019

A Fazenda


Eram já dois copos de vinho quando ela viu a foto. Uma varanda, cheia de verde, vasos e algumas flores rosas. As telhas apareciam na moldura, um pouco torta pela falta de cuidado da fotógrafa, mas ela ainda assim sentiu o cheiro. O cheiro da cerâmica quente e do café. Ela logo viu a tia sentada numa mesa de madeira rústica, provavelmente vestida num tecido simples de descanso, chapéu à mão, pronta pra uma caminhada. A elegância do dia a dia ali se rende à simplicidade da fazenda. O cachecol que a protege em Paris ali fica na gaveta, refém do sol escaldante do Mato Grosso do Sul. Da foto, ela só sente o calor. Não o calor do sol, mas o calor da mesa de café da manhã que ela viveu há tantos anos... Uns 20 anos, talvez? Mais. O calor do carinho, da amizade, da Torta Olga. O calor da liberdade impensada que nem imaginava que era tão livre. Tão cheia de vida.

Em dois dias serão 10 anos da morte do seu pai. Ela trava o teclado. Não imaginou que a varanda da Tia Dirce ia levá-la à morte de seu pai. Que a mesa de café da manhã daquele fim de semana ia tocar no sentimento que os 10 anos sem ele traz. Nas novas perspectivas de uma relação que ficou unilateral sem a presença de uma das partes. Acreditava que seria um breve texto sobre saudades de uma época jovem, de amizades antigas, de pão de queijo e bolo quente.

Ela pára o teclado. De novo. Dessa vez para consolar a filha que entra aos prantos porque está assistindo a um filme em que o cachorro morre. "Ser sensível é parte de quem você é, filha, chora. Não perde isso, não. Mas corre pra ver o final porque no fim, nenhum filme é totalmente triste. Confia em mim. Você vai sorrir. Mesmo que entre lágrimas."

10 anos. 20 e tantos, do fim de semana na varanda da fazenda. Ela se olha no espelho e se pergunta quem é. Há tempos não escreve. Não cria. Há tempos que se sente presa na rotina necessária da maternidade num país em que não cresceu. Focada em ajudar os filhos a serem quem são. Quem são... Irônico, não?

Toma mais um gole do Vinho Verde português. Português como ele foi, como ele garantiu que ela também se tornasse. Ele se foi antes de que ela pudesse agradecê-lo por isso, antes que ela pudesse agradecê-lo por tanto mais. Ele não sabe o quanto ela, agora, se vê nele. O quanto ela, hoje, sabe que é ele. Ele se foi sem ter ouvido "eu tenho a sua empatia com os outros. Eu tenho sua alma cigana. Sabe o tal Sebastianismo coletivo que você carregava? Pois bem, eu também carrego. Sabe quando você me pedia pra escrever a sua biografia? Era o escritor em você, que eu também tenho. Eu cresci achando que meu forte era ser dura e racional, mas encontrei meu poder na sensibilidade que eu nem sabia que tinha. Sua. Sua sensibilidade."

Tanto que lhe diria. E, no entanto, há 10 anos que não o tem mais.  Há 10 anos ela se despediu dele ao som de Vivaldi, escolhido às pressas pra fugir do trânsito paulista do fim da tarde. "As quatro estações". A última piada que ele pregou nela. A música do comercial de sabonete que nada tem de fúnebre e a fez sorrir quando acompanhou o caixão no crematório. 5 da tarde. O trânsito que eu vou pegar. Em meio às lagrimas, ela sorriu, como sorri em todo filme que não acaba triste, como sorri em toda história que acaba em ternura.

Troca Vivaldi pelo Fado. Chora. Os acordes do Fado sempre a fazem cair no choro.

"Você nem imagina o quanto deixou de você em mim. E eu te peço perdão por não ter te mostrado isso antes de ir embora. Perdão por eu não ter te dito que o cheiro de vinho com salame e queijo me faz sorrir. Perdão por não te agradecer as suas historias que eu não pude escrever porque não sabia o valor que tinham. Perdão por não te mostrar o quanto somos parecidos. Sim, eu e você, parecidos. Perdão por você não me ver chorar com Fado e não saber que eu me vejo em você. Em seu coração grande e em sua paixão pelo próximo. Me perdoa por nunca ter te dito o quanto eu ter admiro. Eu te admiro. E muito."

Pra voltar pra varanda da fazenda ela troca o Fado por Zé Ramalho, ritmo que a conecta, estranhamente, ao ponto de origem. Os vasos da Tia Dirce. O pé de chão do forró em Itacaré. O céu estrelado em Maceió. A paixão do Rio de Janeiro. As noites em São Paulo. Agora é ela que está à mesa rústica, vestido branco e chapéu na mão, contemplando o verde, o rosa e os vasos. O cheiro de café, de pão de queijo, de vinho, salame e queijo. De cuca com nata e chimarrão. De lenha. De boteco e asfalto. De mar. De aeroporto. Do cangote da irmã e do colo da mãe.

E desse cheiro todo, desse som (agora Marina Lima no Itunes, e ela teme que Legião seja o próximo. Noite longa à frente...) ela sente o abraço da sua História. Uma coleção de experiências, amores, areias e sabores que caem em seu peito e mais ou menos formam quem ela acha que é. Ela muda. Hoje é fado, amanhã rock and roll e em alguns segundos Cazuza. "Aguava o bom do amor."
Ela pega o chapéu, toma mais um gole do café e se levanta. Uma brisa quente balança o vestido branco e seus pés quase queimam no piso ao sol. Ela caminha, toca as folhas verdes e as flores do caminho. Caminha com a leveza de quem sabe que vai pisar nas pedras a talvez furar o dedo nos espinhos, mas que a mesa atrás de si fica posta, cheia de bolos quentes e cheiros frescos. Ao som dos passarinhos.

sexta-feira, abril 12, 2019

Fazenda São João

A Fazenda São João

Eram oito da manhã quando Anita ouviu o motor de caminhonete se aproximando do portão da fazenda. Olhou pela janela à frente da pia, secou as mãos no avental florido que Jorge lhe havia dado de Dia das Mães e respirou fundo. Tão cedo, ninguém entra pela estrada a essa hora com boas notícias. Fechou a torneira e se dirigiu à porta. Ombro encostado na beira, pé sem chinelo apoiado na perna ao lado. Braços cruzados. Cenho franzido. 

“Rubens”, gritou por cima do ombro sem olhar pra trás.
“Ruuuubens, tem uma caminhonete chegando.”

Rubens veio secando o rosto, olhou para Anita com olhos inchados de quem já não precisa acordar com os galos pra ir pra lavoura e já pode se dar ao luxo de dormir até sol alto. Enquanto caminhava até ela, se pegou pensando que mesmo depois de tantos anos (lá se vão quantos, 30? 35?) Anita ainda era bela como quando a viu pela primeira vez, descendo do lombo do cavalo de seu pai na frente da padaria da vila. Parou poucos metros atrás dela e viu que a cintura que carregou 3 filhos ainda fazia uma leve curva, e teve vontade de abraçá-la. Não o fez porque sentiu a tensão em seu corpo.

“Quem será?” Resignou-se a perguntar

“A essa hora? Levantando esse poeirão todo? Agouro, com certeza.”

Nos segundos que restavam para o veículo chegar, a cabeça maternal de Anita correu a todos os seus, como se checando que cada um dos pintinhos estão seguros em baixo de suas asas. Helena havia saído para trabalhar cedo, Mauro esteve na semana passada com os pais, parecia bem de saúde e deveria estar na cidade em aula nesse momento e Jorge… Seu coração apertou. Apenas Jorge, seu primogénito estava longe demais e dele não sabia a uns meses. Seria ele? De volta do campo de batalha? Por um breve sopro de tempo seu coração sentiu esperança e Anita se atreveu a olhar para Rubens e aceitar que sua mão a envolvesse pela cintura. Com um sorriso maroto se virou para o marido. 

“Será que ele voltou?”

Sentiu o calor fresco do rosto do marido ao seu lado. Reparou em suas rugas, na pele marcada de sol, de anos e anos de trabalho duro, tudo pra fazer dos filhos pessoas da cidade. A mão dele por cima do vestido e do avental florido ainda era calosa, dura, áspera, opostas ao seu coração mole de homem grande. 

Arrumou o cabelo e alisou o avental quando a caminhonete verde estacionou. 

Quem saiu não foi Jorge. Um senhor de uniforme do Exercito Brasileiro desceu com um envelope nas mãos, e ao ver o casal posto à porta, bateu continência. Ao se aproximar, depois dos bons dias e dos desculpem a hora, entregou à Anita o envelope. O soldado treinado não abaixou os olhos mas Anita reparou que o homem por baixo do uniforme tremia ao passar-lhe o papel. 

Por baixo do avental (Jorge lhe dera de Dia das Mães, comprei quando passamos por Maceió, mãe, cheio de flores pra senhora se alegrar) sentiu que o coração lhe batia como se fosse rasgar a pele. Passou o envelope para Rubens e sem precisar abrir para saber o que era, de olhos fixos no soldado filho de outra mãe, perguntou.

“Quando?”

“No dia 25 de Março, senhora.”

“Onde?”

“Em batalha.”

“Eu perguntei onde”

“Na fronteira com o nosso país vizinho, senhora.”

“Sofreu?”

“Nem viu. Sofremos nós, que ficamos. Senhora.”

“O senhor tem mãe, soldado?”

“Tenho sim senhora.”

Enquanto Rubens urrava de dor sentado à mesa da cozinha, Anita flutuou as mãos por trás da cintura fina (a cintura que se alargou tanto para trazer Jorge à vida), desamarrou o avental florido de Maceió (a senhora ia adorar a praia, mãe, um dia levo a senhora e o pai.) e o entregou ao soldado vivo filho da mãe, não dela, de outra mãe viva.

“Dê a ela de presente. Esse pedaço de pano bonito leva o amor de um filho. Não merece carregar a dor de uma mãe”

O homem por baixo do soldado engoliu em seco uma enxurrada presa na garganta, pegou o avental, abaixou a cabeça e voltou por onde veio.

Anita seguiu o poeirão do agouro pela janela, até que ele sumiu.

Por cima do vestido, no lugar do avental a dor que ela nunca mais despiria.