O quarto pintado
“Daqui em diante, tudo já é mundo”
in Gabriel Garcia Márquez
O começo foi o barulho forte de uma porta batendo ao vento. Ventania de fim de novembro, anunciadora das chuvas de verão.
“Deve ter alguma janela aberta em cima... Mas e então? Gostou da casa?” perguntou ansioso o corretor, que havia meses não conseguia sair de aluguéis baratos que mal pagavam a escola do filho.
“Não sei, a vizinhança é boa, mas será que comporta um restaurante como o meu?”
“Claro, Sr. Ulisses, comporta sim.”, respondeu enquanto guiava seu melhor cliente há tempos para o andar de cima. “Aproveitamos e fechamos a janela. Parece que vem chuva forte, hoje, não?”
Subiram a escadaria antiga de madeira, o corretor falando do bom trânsito das ruas, da excelente estrutura elétrica da casa, enquanto Ulisses sentia as rusgas do corrimão em seus dedos, absorto em imaginar quantas mãos por ali tinham passado. Chegando ao andar de cima, encontraram um logo espaço quadrado, claro, com quartos que se encaravam frente à frente, em um ambiente livre e ventilado. O corretor continuou a falar, entrando de quarto em quarto, checando as janelas...
Ulisses já não o ouvia mais. Parado à porta do segundo quarto, percebia que a voz do rapaz se distanciava, num abrir e fechar de janelas errôneas, enquanto ouvia o sibilar do vento.
“É daqui. O vento vem daqui.”, murmurou, entrando no aposento.
O corretor se apressou atrás dele, se desculpando pela bagunça e pelas paredes pintadas, “essa casa está fechada há muitos anos, essa parede o senhor pinta, eu posso até ajudar, viu, meu pai foi pintor, eu sou bom de pincel”
“Quero.”
“Quer? Venho sim, viu, trago até meu filho..”
“Quero a casa. Quero esse quarto.”
***
Laura correu os olhos pelas estantes da biblioteca do pai, curiosa, olhos de jaboticaba famintos por algo que fizesse aquele sábado chuvoso passar mais rápido. Sentia as lombadas frias como quem procura o gato certo para acariciar. Mordia os lábios, num movimento de quem pensa muito profundamente sobre a decisão certa a se tomar.
Deu um pulo assustada quando uma porta bateu com muita força. Segurava um livro, que saiu da fileira arrumada da biblioteca no instante em que ouviu sua mãe gritar, também assustada “Laura! De novo sua janela aberta, menina! Quantas vezes já pedi para você fechar em dia de chuva? Minha porta já lascou de tanto bater”.
É esse, pensou. Capa vermelha com a ilustração de uma garota mal maquiada no centro. “Erêndira”. Que nome estranho. Gosto do estranho.
Subiu as escadas segurando-se no corrimão áspero, absorvida na capa e no nome do livro. “A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua vó desalmada.” Perfeito para um dia de chuva.
Naquele final de semana Laura não foi mais vista. Seu pai, zeloso, levou-lhe o jantar e a encontrou de bruços na cama, apoiada nos cotovelos, pés descalços cruzados no ar.
“Pai, esse livro é mágico.”
“É? Ele tem um segredo? Qual o poder dele?”
“Não assim, pai... Não tenho mais cinco anos” riu Laura enquanto se sentava para arrumar a bandeja que o pai trouxe. “Mágico mágico, sabe? Acontecem umas coisas bem loucas, a menina e a avó se comunicam no sono. A casa é viva... Estranho. Gosto do estranho.”
O pai sorriu do encantamento da filha, alisou-lhe os cabelos e apenas pediu que comesse. “Depois você me conta mais, sua mãe fez minha sobremesa favorita. Pavê de coco. Não quer descer?”
Não ouviu resposta. Saiu do quarto da filha fechando lentamente a porta, com o cuidado de não a tirar mais da magia. A janta certamente esfriaria....
Laura se levantou, suspirando. Foi até a janela e, abafada de novembro, abriu as duas folhas, precisada de vento.
Deixou que a ventania invadisse o quarto. Ficou de olhos fechados recebendo a fúria que vinha de fora, e não se importou com os papéis que voaram, os desenhos que saíram do lugar, os porta retratos que caíram. Sabia que aquele era seu momento de Erêndira. Queria tanto aquela magia pra si que ouviu o vento lhe sussurrar nos ouvidos, viu quando ele caminhava por entre seus vestidos e por ele se apaixonou. Precisava daquele movimento sempre, dentro e fora.
Descalça desceu pulando os degraus, para encontrar seus pais começando a jantar.
“Mãe, quero uma cortina de voal.”
****
No dia da mudança o barulho de panelas batendo era intenso. A esposa de Ulisses arrumava os utensílios com os funcionários enquanto ele carregava caixas e mais caixas. O restaurante era seu grande sonho, sua grande magia. Aprendera a cozinhar com as tias, em uma fazenda no interior de São Paulo, onde cresceu. Filho do mato, pôde estudar graças ao suor e aos calos do pai, e um belo dia se viu estagiando em um grande restaurante em Bologna, na Itália. Naqueles anos criou seus próprios calos, mas foi abençoado com um novo olhar. Entre um risotto e um ravióli percorria os museus em busca de um suspiro ancestral. Via nas telas renascentistas um tempero como nenhum outro, e sabia que ali, na frente de cada moldura, nascia algo que ele ainda não conhecia.
Voltou ao Brasil com esse gosto na boca, e ao lado da esposa e do filho, pôde finalmente traduzir isso em um espaço seu. Não queria um restaurante comum. De italianos São Paulo já se bastava. Queria algo novo, ventilado, mágico. Foi quando encontrou a casa.
Quando começaram a reformar os ambientes para que se adaptasse a um restaurante, ele lacrou o quarto pintado. “Esse espaço é meu, não mexam.”
Ao final daquele primeiro dia de arrumações, Ulisses e a esposa iam saindo quando se deram conta que Estevão tinha sumido. O menino de 6 anos acompanhava toda a movimentação como um pequeno chef natural, organizando com o pai cada panela em seu devido lugar. Desta vez, entretanto, não estava na cozinha. Não estava nos banheiros, em cujas portas ele mesmo havia desenhado “meninos” e “meninas”. Ulisses sentiu, então, os dedos encostarem no corrimão de madeira. Olhou para cima, e ouviu o vento. Subiu.
Estevão estava de frente para a parede do quarto pintado, sentado em um pufe que Ulisses colocara ali para descansar. O menino delineava a árvore que subia do rodapé até o teto, como se ele mesmo a estivesse pintando, tão compenetrado que gritou quando o pai tocou-lhe o ombro.
“Quem pintou isso, pai? É tão linda, tão grande...”
“Não sei, filho.... Alguém que morou aqui há muito tempo. Devia gostar demais dela... Veja, nestas folhas podemos ver marcas de dedos feitas com a tinta...”
“É mesmo....” disse maravilhado o menino “De quem será esse dedo?”...
“Não temos como saber, Estevão... Compramos a casa de uma fundação, já perderam o contato com a família faz tempo. Por um lado é até bom, sabe? Nestes meses em que reformamos a casa, quando eu ficava muito cansado, vinha até esse quarto, me sentava nesse pufe e ficava ouvindo o vento que adora entrar por essa janela de madeira. Parece até que ele conversa com a gente. Então ficava imaginando quem poderia ter sido o dono desse dedo, desse quarto, dessa árvore. Uma árvore que brotou na parede, mas que nasceu de alguém. E imaginar isso me relaxa... Por isso não mexo neste quarto. Ele vai ficar assim, pintado, zunindo.
Estevão foi até a janela e a abriu. O vento entrou sem pedir licença, como quem já conhece os caminhos. Bagunçou os cachos do menino, que abria a boca para senti-la secar, e encheu o quarto de frescor.
“Pai, essa janela precisa de uma cortina. Uma cortina que dance com o vento.”
****
“Coitada da Erêndira, ela passou a vida pagando por uma dívida que nem era dela... Deve ser triste viver em dívida.”
Laura não conseguia se despedir do livro, da Erêndira, do estranhamento que aquelas linhas causaram. Era uma realidade gigante demais para caber somente nas páginas.
“Mas que dívida é essa? Era a coisa lá com a avó dela?”
“A coisa lá com a avó dela, que jeito de falar, Nelson, a coisa lá... Já te contei a história, aliás, umas mil vezes.”
“Eu sei, Laurinha, mas você me conta assim, deitada no meu colo, não consigo me concentrar. Espero pra te ver a semana toda e você me vem com essas histórias malucas. Eu aqui, louco pra cheirar seus cabelos, te pegar pela cintura e você com essa Erêndira. Daqui a pouco eu vou ficar é com ciúmes dela...”
Laura deu um beijo em Nelson consolando o namorado carente.
“Eu sei, desculpe. Mas fiquei pensando em como a culpa move as pessoas... Mesmo que seja culpa de algo que nós nem tenhamos feito... Desculpe...”
Estavam no parque da Aclimação, à beira do lago, como faziam todas as tardes de sábado. Nelson vinha do colégio interno para a casa dos pais, mas corria logo pro colo e pra loucura de Laura. Uma loucura que ele aprendera a amar desde criança, quando brincavam na rua.
Conheciam cada detalhe do parque, cada árvore, cada cerca.
“Será que a cerca sente culpa por cercar a árvore?”
“Ah, Laura, pelo amor de Deus... Cerca sentir culpa? De novo o livro, né?”
“Não, não é isso... Nós vivemos nos cercando, cercando de proteção, de coisas, de medos, de regras... Me sinto um pouco como aquela árvore. Cercada.”
Nelson se levantou irritado. Até pra ele as divagações de Laura tinham limite. Disse isso pra ela e foi embora.
Laura continuou ali. Procurando as lágrimas na jaboticabeira cercada.
No sábado seguinte, logo cedo, a campainha tocou. Deitada em sua cama, Laura ouviu a voz de Nelson, fechou os olhos e fingiu que ainda não tinha acordado. Percebeu que a porta se abria pela força do zunido do vento na janela. Ouviu os passos de Nelson que se sentou ao seu lado.
Contente por vê-lo, abraçaram-se por algum tempo, até que ela viu algo brilhando no chão.
“É uma lata de tinta... Acho que sei como você pode libertar sua jaboticabeira...”
****
Naquela semana o restaurante de Ulisses fazia aniversário. Um ano de portas abertas. Uma correria, mas uma correria que dava muito certo. O ambiente que ele criara unido ao sabor único dos pratos rendeu ao lugar uma lista enorme de clientes fiéis. Ele estava exausto. Sentava-se diariamente, antes de acender a cozinha, no pufe de frente para a parede pintada. Já conhecia cada traço, cada nuance da tinta, cada espaço onde ela se perdera no tempo. Já conversava com o vento, compreendia-o como nunca e respirava a magia do quarto.
Na segunda feira, dia de escritório, ele percebeu que o vento se agitava. Não vinham as nuvens costumeiras, mas o sibilar dentro da casa ficou insuportável. Ulisses correu os quartos para ver se mais alguma janela se rendia ao poder da ventania. Algo estava estranho.
No quarto pintado, as cortinas que dançam se enrolavam tanto que ele pensou que fossem cair. Receoso, fechou as janelas, portas e resolveu ir trabalhar no apartamento. Ligou para que a esposa viesse busca-lo e desceu.
Ao trancar o portão, viu na calçada oposta, uma senhora elegante que observava a casa. Reparou que ela olhava diretamente para a janela de cima e ouviu quando o vento forçou a janela, e ela abriu... Um senhor chegou por trás dela, disse algo em seu ouvido e cheirou-lhe os cabelos. Deu um beijo em sua face a acompanhou ao atravessar a rua.
Ela estava tão absorta na janela que não viu Ulisses à sua frente.
“Pois não, senhora? Hoje o restaurante não abre. Desculpe.”
Ela não respondeu. O marido tocou-lhe o braço e ela saiu do transe piscando os olhos.
“Não, não viemos jantar, não... Sabe o que é?... Eu cresci nesta casa.”
Ulisses sentiu o vento soprar mais forte. Os cabelos dela caíram nos olhos, que ele notou serem grandes e curiosos...
“A senhora morou aqui?”
“Sim, há muitos anos. Hoje vivo em Florença, tenho um ateliê de cerâmica. Vim visitar minha filha e quis ver a casa. A janela.”
“Ouvir o vento...” sussurrou Ulisses. “A senhora é artista.... Sei qual foi seu quarto, venha.”
Entraram os três, guiados pelas rusgas do corrimão de madeira, escada acima, em direção ao som do vento.
Dentro do quarto, Laura passou os dedos na árvore. Olhou para Nelson e os dois sorriram. Ulisses observava a senhora que ele tanto imaginou. Viu que era bela, e que tinha no olhar um encantamento que há muito não via. Artista, claro... Quem mais poderia ter vivido ali?
Laura mal acreditava que após tantos anos sua árvore estava ainda ali. Olhou a cortina e se lembrou de Erêndira. O voal que lhe levava para dentro do livro tocava igualmente outra alma, outra fome. Fome de vida, de vento...
Sentiu então que uma mão segurava a sua, e viu aos seus pés um menino. Estevão vinha buscar o pai quando os encontrou de frente para a parede.
Sem dizer nada, ele guiou a mão dela até a mancha na folha pintada... Como quem monta um quebra cabeças, encaixou seu dedo na digital antiga, gasta, serena... Vendo a emoção dela, Estevão disse:
“A senhora sabia que esse quarto é mágico? Meu pai acha que é o vento, mas eu sei que não é... Ele é mágico por causa da árvore.”
“Da árvore?” perguntou Laura, enrolada no choro preso.
“É... A árvore é livre.”
3 comentários:
Obrigada. Seu texto me emocionou muito.
Que bom que gostou.... Mesmo que eu nao saiba quem vc é, fico feliz que tenha se empcionado! Esse texto é especial pra mim
Que texto incrível! Obrigada!
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