sexta-feira, setembro 30, 2011

A mãe do metaleiro

João sempre foi rock and roll. Desde pequeno mantinha os cachos grandes, pra poder bater a cabeça enquanto ouvia o cd de cantigas que a mãe lhe comprava.
Beth adorava as expressões radicais do filho, ela mesma um pouco radical em sua adoração à arte. Artista Plástica, era a mãe perfeita para liberar as ânsias metaleiras do pequeno João.

Logo começaram os shows. Morando no interior, Beth foi permitindo aos poucos as saídas do filho adolescente. Ela mesma começou levando a São Paulo. Depois, ela mesma fretava a van, e depois ela mesma arrumava os grupos que o levariam às pistas de rock. Sempre o deixava voar, mas ficava à sua espera, e o via chegar, por vezes encharcado de chuva, com um sorriso no rosto, animada pela animação dele.

Até que um dia João comunicou que o passo era mais longo.

"Rock in Rio, mãe. Eu vou."

Sem "ok?" no final da frase. Sem "tá?". Um seco ponto final avisava Beth que chegara a hora do voo solo.
Sentiu a boca seca, mas manteve o semblante sereno que passou a segurança de que João precisava. Sem voz, não fez perguntas.

Na tarde em que o ônibus sairia da Praça da Matriz, Beth perguntou o que ele queria levar de lanche.

"Nada, mãe, eu como antes de sair. Não se preocupa!"

Beth se preocupou. Foi ao mercado e encheu a mochila do filho de bolos "Ana Maria" e caixinhas de Toddynhos, que ele só veria quando batesse a fome. Ao sair de casa, ofereceu-lhe uma manta.

"Que manta, mãe, pelamordedeus, manta??? Eu vou num grupo que nem conheço, só metaleiro, e eu de mantinha?"

"Filho, de madrugada faz frio, leva?..."

"Não."

Ponto final. Aquele, seco, de antes.

Aproximaram-se da praça e avistaram os fãs descoladamente vestidos de preto, cabeludos, com mochilas para a aventura e nenhuma manta nas mãos... João pediu para descer ali mesmo. Não deixou de dar um rápido beijo de despedida em Beth. Era um bom menino.

"Vai, mãe, pode ir. Vai demorar um pouco para sair. Amanhã à noite eu volto. Tchau."

Beth, lógico, não foi. Deu a volta na praça e estacionou em um ponto de onde via o ônibus. Esperou seu pequeno João entrar e só depois partiu.

João só encontrou um lugar vago no ônibus. Sentou-se ao lado de um metaleiro mais velho, grisalho, gordo, barbado. Ainda mantinha os cabelos longos, mesmo que na frente a testa anunciasse que por ali já houvera mais tufos. Olharam-se e com a cumplicidade de dois homens que passarão a noite dormindo lado a lado, cumprimentaram-se com um breve e sisudo balançar de cabeças. Sem palavras. João sentiu frio nas pernas...

No meio da noite, João teve fome. Acordou com o roncar do estômago. Sentiu uma leve esperança de que acharia um resto de biscoito perdido na mochila e intuitivamente a abriu. Sorriu, cheio de ternura pela mãe.

Olhou em volta e abriu silenciosamente o pacote que trazia uma menininha loira comendo um bolinho de chocolate deliciosamente recheado... Em seguida, pegou o leitinho, mas ao rasgar o plástico do canudo, ouviu uma risada de escárnio de seu vizinho.

"Toddynho do Toy Story???"

Tremeu. Viu que a caixinha tinha um enorme Buzz Lightyear quase gritando "Ao infinito... E Aléééém!". Ainda sem respirar, já pensando que seria largado no acostamento, ouviu o companheiro dizer, mostrando-lhe uma outra caixinha, parecida:

"O meu é do Shrek... Minha véia não me deixa sair sem lanche. Boa, a minha coroa."

Riu e terminou seu leite. Seu novo amiguinho também ria, enquanto abria um papel alumínio com bisnaguinhas de sanduíche de atum.

No dia seguinte, voltou ao mesmo lugar na praça, onde viu que o jornal da cidade tirava fotos do grupo de roqueiros que tinha ido ao Rock in Rio. Atrás, Beth acenava de dentro do carro, receosa de aproximar-se e fazer João passar vergonha. Ele atravessou a rua, entrou no carro e lhe beijou.

"Como foi, filho? Deu tudo certo?"

"Deu, mãe. Deu tudo certo..."

Com o carro em movimento, viu seu companheiro de banco atravessar a rua e dar a mochila a uma senhora de vestido florido e chinelas. Viu que ela o beijava enquanto arrumava seu rabo de cavalo amassado da viagem.

Apoiou a cabeça no encosto e disse:

"Mãe, na próxima você me compra uma manta pequena? Das que cabem na mochila, sabe? Nunca imaginei que no Rio de Janeiro ia fazer frio..."



Dedicado a uma amiga maravilhosa que me conta os causos mais deliciosos... Baseado em fatos reais...

5 comentários:

Carol Contreras disse...

Adorei. Mães só mudam de endereço mesmo...

Elô disse...

Eu adorei! Que lindo.... que emoção que é ver crescer. Bjssss

Rubi disse...

Fiquei com vontade de chorar...

Mariana - viciados em colo disse...

a gente sabe que tá velha quando se coloca no lugar da mãe e não do filho! parecia que eu estava dentro do carro vendo o ônibus sair da praça!

adorei o texto e até fiz meu marido ler: ele adorou, mas se colocou no lugar do filho - hohohoho!!!

beijoca
mari

viciadosemcolo.blogspot.com

Aline Cortes disse...

Adorei o texto! Venho descobrindo um universo de blogs de mães e seus relatos sobre os respectivos bebês. E ler este, sobre um "bebê grande" também foi uma delícia. E como a sábia Mariana disse, li tudo com os olhos da mãe, claro!
Abraços,
Aline
www.decaronanacegonha.blogspot.com