"Como alguém faz isso com uma criança? Como?"
Ele disse isso aos prantos, sentado ao meu lado, abrindo o coração (e o baú de histórias) para um grupo de escritores que ele conheceu a apenas 8 semanas. As lágrimas que começaram a aparecer se transformaram em um choro doído, alto, daqueles de chacoalhar os ombros, e que te obriga fazer algo. Alguém passou a caixa de lenços pra ele, então minha única opção foi colocar a mão em suas costas e gentilmente traçar um círculo de carinho nelas. Eu queria mesmo era abraçá-lo, mas 8 semanas são 8 semanas. Cedo pra colocar aquele homem de 65 anos e porte de motoqueiro no meu colo e ninar a criança que precisava ser ninada.
Dave é um cara grande, daqueles com voz de trovão que te intimidam de cara. Una a isso o sotaque de italiano do Brooklin e você tem desenhada a imagem de um bad boy mafioso de quem é melhor manter a distância. Humana que eu sou, na primeira aula duvidei que ali morasse alguma sensibilidade artística notável, além de talvez uma habilidade para consertar motores, já que seus dedos estavam bem sujos de algo preto. Só podia ser graxa, o que mais?
Então vi que um pedaço de papel toalha molhado de tinta preta estava ao lado de um caderno com papel grosso e capa de couro e vi que a graxa que eu julguei era, nada menos, que pingos de uma caneta tinteiro que Dave usa para escrever. Sua graxa é tinta. Quem ainda escreve com caneta tinteiro? Provavelmente alguém que escreve há anos e que dá tamanha importância pra sua arte que não se importa com o tempo ou com a sujeira que ela demanda.
Suas histórias começaram a delinear uma personalidade tão complexa quanto sua escrita, que me leva às lagrimas a cada aula. Eu não sou a única, Dave chora sem medo nenhum de chorar. De todos nós, é de longe o melhor escritor. De longe! Neste grupo compreendi que não basta ter uma história pra contar, tem que saber contá-la, conectar as idéias e usar as imagens mais adequadas. Além de tudo isso, há que se ter uma voz. Não a de trovão dele, ou a rouca que eu tenho, ou a esganiçada que uma moça tem, ou a suave, sulista e saudosa da Rosie, mas a voz literária que permeia cada página de sua escrita. A maioria de nós está ainda buscando sua voz narrativa, e a do Dave não deixa que ele fuja dela: sua voz é negra, pesada e cheia de melancolia e dor. Ele diz que não "quer mais tentar pintar um quadro bonito" e eu respondo que se ele estava fazendo isso, sua voz o estava traindo: a beleza de suas palavras está no peso delas.
Foram semanas de atalhos para que a criança aparecesse no papel. Os anos em que morou com sua primeira esposa no Vale da Morte, depois seus dias de "homem das montanhas" no Colorado, as aventuras de quem não tinha laços em nenhuma parte do país e seus anos vivendo como professor de inglês na Europa foram apenas um preâmbulo pra chegar no dia da morte de seu pai.
Ele começa falando de uma professora que, em uma fase em que ele não se sentia visto em casa, viu nele um potencial que sua mãe de luto não enxegrava. O menino de 11 anos agora está em um palco, recitando um discurso histórico que, memorizado, deu a ele a chance de intercalar o nervosismo do palco (e a vontade de agradar à freira que era sua professora e única pessoa que ele respeitava então) com a lembrança do dia do casamento de sua irmã mais velha.
Ele tinha 6 anos, e esperava o resto da família se arrumar para a cerimônia, em um fim de tarde em 1958 quando seu pai caiu no banheiro depois de passar por uma cirurgia de coração. A próxima imagem é de seus familiares arrastando o corpo sem vida de seu pai para a sala e a ordem de irem buscar um padre. Não um médico, um padre. Dave corre pelas ruas do Brooklin com sua irmã e volta com o Padre, que nada pode fazer a não ser ser Padre. Sem entender como, ele escreve que o casamento seguiu, assim como a vida, e ele, aos 6 anos, não foi à cerimõnia e dormiu sozinho em um quarto escuro na casa do vizinho, sem maiores explicações e nenhuma companhia.
O texto acaba, e ele em meio ao nosso silêncio estupefato, chora: "Como alguém faz isso com uma criança? Como?"
São sessenta anos entre um dia e o outro, e a criança ainda quer saber o porquê, ainda sente medo do escuro e muita raiva pela solidão que lhe impuseram. No dia em que seu pai morreu, sua irmã se casou, ele dormiu sozinho. Como?
A empatia que me torna humana me fez chorar, com vontade de correr no tempo e deitar ao lado do Dave menino, abraçá-lo bem forte e dizer que de um jeito meio torto, tudo ia ficar bem. Eu diria pra ele que ele não tem culpa da bagunça interna dos outros e que alguém, ao longo do caminho, ia vê-lo como ele merece ser visto. Que fosse num carro no Arizona, numa cabine nas montanhas do Colorado ou numa mesa de escritores em Richmond.
Como eu não posso voltar no tempo, eu apenas escuto, entre lágrimas, minhas, dele e de todos ali tocados pela força da escrita e da memória...
Um comentário:
lembra que eu dizia,esta minha filha vai ser engenheira,lendo seus textos no jeca,hoje tenho certeza que como engenheira vc me saiu uma ótima escritora.amei,
escreva um livro tenho certeza que vei ser um sucesso.bjs
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