terça-feira, fevereiro 09, 2016

A contadora de histórias

O nome dela é Rosie. É alta, esbelta e elegante. Chega na sala sorrindo, aquele sorriso que aperta os olhos, de tão largo. Logo reparo nos cabelos dela. Curtos, pintados de loiro prateado, bem batido na nuca e com uma franja pontuda na frente. Ultra moderna. Rosie tem 74 anos.
Como as outras 7 mulheres do grupo, ela quer escrever. Diz que é a última a se lembrar do avô e das histórias da família, e por isso precisa escrever.

"Eu sempre escutei uma voz, 'escreva, escreva', mas eram tantos 'não dá' que sempre deixei pra depois. 'Não tenho tempo, não tenho organização, ninguém vai ler, perdi o pouco de gramática que eu um dia tive... Agora não quero mais os 'não dá'. Eu preciso escrever."

Nossa primeira tarefa é escrever um texto que comece com "Eu me lembro..." em 10 minutos. Rosie sorri enquanto escreve. Não mais o sorriso de apertar os olhos, mas o sorriso de canto de boca de quem está revisitando um lugar feliz.

Todas lemos nossos textos. Rosie é a última. Ela já começa com um suspiro, como se estivesse preparando uma audiência para uma história em volta da cadeira de balanço, no terraço de casa. E então, me dou conta de que estou perante uma contadora de histórias. Daquelas que dão ênfase às palavras certas, fazem a pausa necessária pra criar suspense e, principalmente, não têm pressa.

Ela conta sobre a primeira vez que seu avô avista sua avó. A cena caberia em um filme ambientado no sul dos Estados Unidos no fim do século XIX. Ele faz a barba no terraço de casa, usando uma navalha, um espelho e uma bacia de água morna. Pelo espelho ele vê a moça bonita caminhando na estrada de terra e, com metade do rosto coberto de espuma, corre pelo jardim para convidá-la pra sair. Mas o que encanta é a melodia da voz de Rosie. Seu sotaque sulista cria toda uma atmosfera que eu, atropelada e intensa, jamais conseguiria criar. Eu ficaria horas ouvindo Rosie falar.

Minha fascinação por ela passa pela percepção de que ninguém mais tem tempo pra ouvir histórias. Histórias de verdade, com começo, meio e fim. A concisão dos 140 caracteres acabou com nossa vontade de clicar em textos grandes. Se decidimos escrever um post mais longo, impreterivelmente começamos com "Desculpe, mas esse post é longo", ou "Senta que lá vem textão..." e aposto a ponta do meu nariz que 100% dos facebuquianos já curtiram um artigo só lendo o título.

Rosie me mostra um caminho inverso. Há que existir tempo pra histórias contadas com pausa, com intenção, sem hashtags que tentem resumir uma idéia pra que eu não precise me alongar e explicar o que quero dizer....

Eu sou meio nostálgica mesmo. Mas estou cansada de falar rápido, de ler correndo e de tentar entender o final do assunto antes de chegar no meio. Sinto que perco tanto.

No final da aula, Rosie escreve sobre o sentimento de não receber cartões de Valentine's Day dos meninos da sala dela. Sua melhor amiga, fiel, é a única que lhe manda um. Seu relato é tão cheio de sentimento que eu me vejo na sala de aula dela, olhando a caixinha vazia de cartões. Sinto cheiro de escola antiga, de lancheira de plástico e danoninho. Sinto a mesma tristeza dela, mas volto ao bailinho em que o menino de quem eu gostava me recusou.... (Lembra desse texto? Está aqui...)

Amanhã tenho mais Rosie... Vou respirar fundo e sorver cada palavra que ela tiver pra compartilhar. Cada palavra que as 7 outras escritoras tiverem para compartilhar. Por um mundo com mais Rosies, pausas e lentidão.
Por um mundo com mais histórias contadas, lembradas e revividas...


PS: Hoje chegou a "Lista do Valentine's Day" da sala das crianças. Agora ninguém mais se sente de fora. "Seu filho não precisa participar, mas se quiser entregar cartão, deve trazer para todos." Ninguém mais vai se sentir rejeitado, nem querido. Todos, artificialmente aceitos, politicamente inseridos. Como um belo feed de notícias... #SQN

terça-feira, fevereiro 02, 2016

A mesa oval da casa antiga

Em 2006 eu escrevi, aqui no blog, um post sobre o livro As Brumas de Avalon, com trilha sonora do Braveheart e tudo. Foi uma das séries mais marcantes que já conheci, e dela me ficou a noção do poder do feminino que eu, até então, não tinha descoberto. Existe algo mágico e muito poderoso em um grupo de mulheres que têm uma missão de transcendência em comum.

Hoje eu vivi um pouco da aura das sacerdotisas. Com direito a um King Arthur no meio e tudo. (tá, faltava um glamour nele, mas ele tinha a barba medieval e estava na ponta da mesa, então...)
Comecei um curso de escrita de memórias.

Quando eu me inscrevi, não pensei tanto no acervo de vida que eu tenho pra registrar, mas sim na necessidade de estar em contato com a escrita que eu tanto amo. O tópico, sinceramente, só me ganhou pelo número de aulas e o horário, que, como boa mãe de crianças em idade escolar, tem que bater com a saída da escola...

E hoje lá fui eu, pumped up com um shake de proteína depois da academia, um caderno todo desenhado da Iolanda e meu discurso de apresentação pronto na caxola, cuja idéia central era pedir desculpas antecipadamente pela futura má qualidade dos meus textos, culpando o inglês para tal e garantindo a todos que, se eles lessem em português, veriam os resultados.

Mas o Universo tinha mais que isso planejado...

Como no curso de História do Museu que eu fiz, mais uma vez, eu sou a mascote. Das 8 mulheres que empunhavam seus cadernos, eu estou na adolescência. Entre mim e a próxima mais nova, deve ter uns 17 anos de experiência a mais, e em meio àquelas senhoras cheias de vontade de escrever, gramática inglesa foi a última coisa em que pensei.

Há algo muito caricatural, pra minha mente irônica, neste grupo. Em primeiro lugar, o curso é em uma casa dos anos 1800, reformada mas ainda rangendo nos pés. Adoro. A sala de aula, um apertado aposento com uma mesa, cadeiras e estantes de livros. Livros sobre artes plásticas, basicamente, mas o cheiro de papel e madeira é o mesmo. Uma pequena reprodução do autorretrato de Albrecht Dürer descansava encostada em um livro sobre pinturas impressionistas. Uma espiada na sala ao lado me compele a sacar o Iphone e tirar uma foto. Controlando a vontade, observo umas 15 pessoas sentadas em frente ao seus cavaletes, desenhando um modelo vivo, sentado à frente de todos.
Minhas colegas de pena vão chegando, timidamente e após breves apresentações, já não há muita timidez no ar. O professor então chega, pasta de couro embaixo do braço, bloco de notas amarelo e uma maneira de falar pausada e cheia de palavras bonitas. Declamando Yeats. Saído de uma sala de aula de filme. Pronto.

Clichê desenhado, clichê apresentado. Só que, desta vez, as apresentações são feitas cheias de emoção.

"Eu deixei minha mãe e minha avó irem embora sem escrever as histórias da família e hoje eu sou a única que se lembra das duas. Sou advogada, mas em outra vida fui professora de inglês."

"Eu sempre tive uma voz na minha cabeça me dizendo 'escreva, escreva' e eu sempre pus os obstáculos na frente. Agora, com 74 anos, não quero mais os obstáculos. Eu quero escrever."

"Eu passei minha vida lidando com meus filhos, dois casamentos e um câncer. Eu tenho muita coisa pra contar, e preciso escrever."

"Eu sou engenheira, penso em forma de diagrama e provavelmente escreva assim também. Mas tenho um filho adulto que me desafia muito, que me faz questionar diariamente até o conceito de amor materno, e eu preciso de cura. Escrever vai ser minha cura."

"Eu não tenho a menor idéia do que estou fazendo aqui. Eu adoro ler, li minha vida toda, fui bibliotecária, tenho 2 netos e uma bisneta de 15 anos. Minhas vizinhas disseram que eu precisava fazer um curso de escrita, mas acho que é só pra se livrarem de mim..."

"Resolvi fazer esse curso pra me reconectar com a escrita", diz uma latina louca que caiu ali de para quedas, só pode...

Foi uma manhã de lágrimas. Todas precisávamos compartilhar sentimentos. Ouvir alguns deles foi dolorido. Falar de alguns também foi dolorido.
Mas foi uma manhã de risadas. Muitas risadas. Há algo tão libertador em chegar aos 75, 76 anos e simplesmente dizer "no fim deu tudo certo, e eu quero falar sobre isso", que senti que essas senhoras são as exatas sacerdotisas da vida que Avalon retrata. Somos todas, mas a coroação leva tempo. 

Então, naquela casa antiga, em volta de uma mesa oval, 8 mulheres redefinem seu passado através da palavra escrita, algumas esperando cura, outras desejando marcar suas Histórias e outras simplesmente querendo desafogar nós presos na garganta. 

Mas todas, sem exceção, confiando na Arte que há dentro delas...